Comissões da verdade
Publicado em 31.01.2010
Inácio Strieder
Neste início de 2010 continuam na ordem do dia as divergências entre o Secretário Especial dos Direitos Humanos, Ministro Paulo Vannuchi, e o Ministro da Defesa Nelson Jobim sobre a criação de uma "Comissão da Verdade" para analisar os crimes desumanos durante a ditadura brasileira de 1964-1985.
De 1971-1996 ao menos vinte países instituíram "Comissões da Verdade" ou "Tribunais de Guerra". O Brasil, na época, preferiu decretar uma anistia total e irrestrita, tentando virar a página e fechar o livro da história de um período de torturas e outros crimes impunes. É verdade, todas as "Comissões da Verdade" buscam virar uma página, mas sem fechar simplesmente um livro de injustiças, mentiras e crimes hediondos contra a humanidade. Nelson Mandela, no primeiro dia da "Comissão da Verdade" na África do Sul, afirmou que "para perdoar e esquecer é preciso saber o que de fato aconteceu". É a velha sabedoria de que não adianta varrer a sujeira para debaixo do tapete. Trazer à tona questões de verdade, justiça e reconciliação não pode restringir-se a debates acadêmicos. Reprimir para o porão do subconsciente histórico a crueldade e as injustiças não cura os traumas de períodos escabrosos da vida de um povo. A psicanálise nos ensina que as causas devem ser trazidas ao consciente. Do contrário continuarão perturbando a vida real. Isto vale tanto para o indivíduo como para a sociedade. A reconciliação exige como que uma histoterapia (uma terapia histórica) para se conhecer e afastar os causadores das desumanidades dos tempos de guerras e de tiranias. Somente conhecendo estas situações traumáticas, dando nomes aos responsáveis, e aplicando os remédios adequados, pode-se ter a esperança numa pacificação duradoura pelo perdão. E isto não é revanchismo, mas a verdade necessária, a única capaz de libertar, e evitar que outros se atrevam a fazer o mesmo em tempos futuros.
Mas será suficiente condenar uns poucos, quando milhares se envolveram em horríveis abusos dos Direitos Humanos? As "Comissões da Verdade" tentam criar condições para o perdão através de averiguações, de anistia e de reparação. Crimes de tortura, ou contra a humanidade, não podem ser anistiados. Uma anistia geral, uma reconciliação genérica e formal não são suficientes. Pois, o que significaria uma reparação puramente genérica e formal para inúmeras pessoas, cujas vidas foram destruídas por indescritíveis sofrimentos? Que dizer para a criança que perdeu sua sanidade, vendo explodir as cabeças de seus familiares? E ao homem que teve seus ossos sistematicamente quebrados pelos torturadores? E às adolescentes e mulheres estupradas?
Com certeza, o melhor é olhar os “monstros” e as “feras” diretamente nos olhos, confrontando-nos verdadeiramente com as trevas do passado. Assim, talvez, se acenda uma luz dando sinais de verdade e justiça, para que no futuro não se repitam as atrocidades do passado. É justamente a verdade e a justiça que as "Comissões da Verdade" pretendem restabelecer nos países traumatizados por guerras, tiranias, racismos, regimes de escravidão e ditaduras. Desmond Tutu e Nelson Mandela, na África do Sul, são exemplos de como se pode presidir uma "Comissão da Verdade" para que um país, dividido por décadas por um racismo cruel e vergonhoso, se reconciliasse.
O debate que hoje acontece no Brasil, sobre criar ou não criar uma "Comissão da Verdade", não é apenas uma questão de política interna, pois há uma exigência internacional escandalizada com a impunidade brasileira de crimes contra os Direitos Humanos. Como um país civilizado pode simplesmente querer varrer torturas, e outros crimes, por debaixo do tapete da história? Por isto, seria muito útil ao Brasil criar sua "Comissão da Verdade", para se redimir perante a Comunidade Internacional, mostrando que também aqui não se toleram ofensas à dignidade humana. Isto, com certeza, contribuiria para que aumentasse nossa esperança de maior justiça e verdade nas relações sociais em nosso país.
» Inácio Strieder é professor de Filosofia
Fonte:
Jornal do Commércio
Publicado em 31.01.2010
Inácio Strieder
Neste início de 2010 continuam na ordem do dia as divergências entre o Secretário Especial dos Direitos Humanos, Ministro Paulo Vannuchi, e o Ministro da Defesa Nelson Jobim sobre a criação de uma "Comissão da Verdade" para analisar os crimes desumanos durante a ditadura brasileira de 1964-1985.
De 1971-1996 ao menos vinte países instituíram "Comissões da Verdade" ou "Tribunais de Guerra". O Brasil, na época, preferiu decretar uma anistia total e irrestrita, tentando virar a página e fechar o livro da história de um período de torturas e outros crimes impunes. É verdade, todas as "Comissões da Verdade" buscam virar uma página, mas sem fechar simplesmente um livro de injustiças, mentiras e crimes hediondos contra a humanidade. Nelson Mandela, no primeiro dia da "Comissão da Verdade" na África do Sul, afirmou que "para perdoar e esquecer é preciso saber o que de fato aconteceu". É a velha sabedoria de que não adianta varrer a sujeira para debaixo do tapete. Trazer à tona questões de verdade, justiça e reconciliação não pode restringir-se a debates acadêmicos. Reprimir para o porão do subconsciente histórico a crueldade e as injustiças não cura os traumas de períodos escabrosos da vida de um povo. A psicanálise nos ensina que as causas devem ser trazidas ao consciente. Do contrário continuarão perturbando a vida real. Isto vale tanto para o indivíduo como para a sociedade. A reconciliação exige como que uma histoterapia (uma terapia histórica) para se conhecer e afastar os causadores das desumanidades dos tempos de guerras e de tiranias. Somente conhecendo estas situações traumáticas, dando nomes aos responsáveis, e aplicando os remédios adequados, pode-se ter a esperança numa pacificação duradoura pelo perdão. E isto não é revanchismo, mas a verdade necessária, a única capaz de libertar, e evitar que outros se atrevam a fazer o mesmo em tempos futuros.
Mas será suficiente condenar uns poucos, quando milhares se envolveram em horríveis abusos dos Direitos Humanos? As "Comissões da Verdade" tentam criar condições para o perdão através de averiguações, de anistia e de reparação. Crimes de tortura, ou contra a humanidade, não podem ser anistiados. Uma anistia geral, uma reconciliação genérica e formal não são suficientes. Pois, o que significaria uma reparação puramente genérica e formal para inúmeras pessoas, cujas vidas foram destruídas por indescritíveis sofrimentos? Que dizer para a criança que perdeu sua sanidade, vendo explodir as cabeças de seus familiares? E ao homem que teve seus ossos sistematicamente quebrados pelos torturadores? E às adolescentes e mulheres estupradas?
Com certeza, o melhor é olhar os “monstros” e as “feras” diretamente nos olhos, confrontando-nos verdadeiramente com as trevas do passado. Assim, talvez, se acenda uma luz dando sinais de verdade e justiça, para que no futuro não se repitam as atrocidades do passado. É justamente a verdade e a justiça que as "Comissões da Verdade" pretendem restabelecer nos países traumatizados por guerras, tiranias, racismos, regimes de escravidão e ditaduras. Desmond Tutu e Nelson Mandela, na África do Sul, são exemplos de como se pode presidir uma "Comissão da Verdade" para que um país, dividido por décadas por um racismo cruel e vergonhoso, se reconciliasse.
O debate que hoje acontece no Brasil, sobre criar ou não criar uma "Comissão da Verdade", não é apenas uma questão de política interna, pois há uma exigência internacional escandalizada com a impunidade brasileira de crimes contra os Direitos Humanos. Como um país civilizado pode simplesmente querer varrer torturas, e outros crimes, por debaixo do tapete da história? Por isto, seria muito útil ao Brasil criar sua "Comissão da Verdade", para se redimir perante a Comunidade Internacional, mostrando que também aqui não se toleram ofensas à dignidade humana. Isto, com certeza, contribuiria para que aumentasse nossa esperança de maior justiça e verdade nas relações sociais em nosso país.
» Inácio Strieder é professor de Filosofia
Fonte:
Jornal do Commércio
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