terça-feira, 9 de março de 2010

Cidadania ainda é utopia

Cidadania ainda é utopia
Publicado em 08.03.2010

Hoje, quando se comemora o Dia Internacional da Mulher, uma das conclusões a que se chega rapidamente a partir da observação das informações do novo portal comparativo de salários no Brasil, lançado no mês passado pelo governo de São Paulo – chamado de “salariômetro” – é a notável e absurda discrepância entre a remuneração de homens e mulheres que realizam a mesma função. O instrumento tecnológico utiliza base de dados do Ministério do Trabalho, e pode revelar diferenças de todo tipo, mas a desigualdade de remuneração por gênero chama a atenção pela persistência de um preconceito que o bom senso julga superada. Pelo visto, o mercado não. Até numa atividade em que a mão de obra feminina é maioria absoluta – a de recepcionista – os homens recebem em média mais do que as mulheres. Se a consulta envolver gênero e raça, os valores encontrados causam espanto: enquanto um jovem “advogado branco” foi contratado nos últimos meses por cerca de R$ 3 mil, uma jovem “advogada negra’, além de ter que procurar mais, teve que se contentar com metade desse salário. De acordo com a pesquisa Trabalho e Desigualdades de Gênero divulgada pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) e pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a diferença salarial entre os gêneros continuou sendo marca registrada do emprego no Brasil em 2009. Na região da Grande São Paulo, por exemplo, a mulher ganhou 80% do que ganharam os homens.

A subremuneração não condiz com a carga de trabalho a que são submetidas. A Organização Mundial do Trabalho (OIT) acaba de divulgar um estudo em que mostra que as mulheres possuem uma jornada de trabalho semanal cinco horas superior à dos homens. O cálculo leva em conta a jornada domiciliar. Os cuidados com a casa e com a família são deixados preferencialmente para as mulheres, numa tendência cultural que atravessa o terceiro milênio. A maior presença feminina no mercado de trabalho, a conquista de postos de comando nas organizações e o pequeno avanço na ocupação de cargos públicos não vieram acompanhados de uma redefinição dos papéis dos gêneros na administração familiar. A contratação de babás e ajudantes para as tarefas do lar foi um efeito, nas últimas décadas, que não esconde o sintoma de desequilíbrio, de raiz histórica, sob o pano de fundo de uma sociedade pós-escravocrata: são mulheres que são contratadas, na grande maioria dos casos, para cuidar da casa e dos filhos dos outros, além dos seus. Como resultado, essas mulheres têm prejudicado o crescimento pessoal, com menos anos de estudo do que se seguissem outras profissões. Segundo o Dieese, 60% das trabalhadoras domésticas frequentaram a escola somente até o ensino fundamental.

O estudo da OIT sobre o mercado brasileiro diz ainda que mais de um terço dos lares no País são chefiados por mulheres – ou seja, é delas, mais do que deles, nestas casas, a responsabilidade pelo pagamento das contas. No andar de baixo da pirâmide social, a atual corrida pela sobrevivência traz contornos dramáticos para a mulher, como se pode testemunhar facilmente nas esquinas do Recife, onde mães se ocupam da “gestão” de crianças pedintes. Sob as vistas grossas da omissão do poder público, a responsabilidade econômica se transforma em irresponsabilidade materna – que se transmite de uma geração a outra cada vez mais cedo, nas meninas-mães que nem se criaram e precisam enfrentar o desafio de criar filhos.

A luta contra distorções que desafiam o tempo e invadem, inclusive, avançadas relações no ambiente urbano e bem-educado das metrópoles, é uma luta por igualdade de condições que desemboca na dura conquista da cidadania. O território foi aberto por heroínas que queriam ser cidadãs. Vale recordar que não faz muito, no caminho da humanidade, a mulher não estudava, não trabalhava, não opinava, não votava. No século passado, a revolução da emancipação mudou o mundo, e se esperava que o terceiro milênio acordasse sob a graça da cidadania feminina plena. Infelizmente, para a maioria das mulheres – que seguem vítimas de discriminação, violência, arrogância, machismo e descaso dos governantes – a cidadania ainda é uma utopia.


Fonte: Folha de Pernambuco

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