segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Só executo marginal

Só executo marginal

encontro que resultou na entrevista ao lado obedeceu a uma série de protocolos de segurança. Após uma negociação de meses, um sargento da Polícia Militar de Pernambuco, pertencente a um grupo de extermínio, aceitou dar entrevista. Ele chegou ao local marcado em um táxi, usando capuz preto, boné e jaqueta. A maior parte da conversa se deu no veículo em movimento. As fotos foram feitas em uma rápida parada numa rua deserta de Olinda. Com a condição de não ter o nome e o rosto revelados, o PM relatou detalhes de sua atuação. Contou que as mortes praticadas pela equipe que integra são de conhecimento do alto escalão da corporação e recordou a época em que fazia parte do Serviço Especial de Inteligência (SEI) da PMPE. O órgão foi extinto em 2001 sob suspeita de prática de extermínio. Segundo o entrevistado, que é militar há 20 anos, existem vários grupos como o dele na corporação. “Meus superiores mandam a gente fazer.” São esquadrões da morte constituídos por policiais que “limpam” as áreas sob sua jurisdição, executando os que eles julgam bandidos. Apesar de ter preservado a imagem, o sargento fez questão de mostrar a carteira funcional para provar que é um policial militar da ativa. Ele também deu detalhes de crimes para que não restasse dúvida de sua participação nas execuções. O que o entrevistado disse vai de encontro ao discurso oficial de que o extermínio está sendo combatido em Pernambuco. As cifras das operações recentes demonstram que aqueles que deveriam estar enfrentando a violência são responsáveis diretos por boa parte do crescimento da criminalidade nos últimos anos. Entre abril de 2007 e julho de 2009, a Secretaria de Defesa Social realizou 30 operações contra o crime organizado. Em 22 das investidas, a principal atividade das quadrilhas era o extermínio. Quase 60% dos bandos armados desarticulados tinham entre seus integrantes policiais, militares das Forças Armadas, bombeiros ou guardas municipais. Foram retirados de circulação 36 PMs, dez policiais civis, seis ex-PMs, quatro guardas municipais, dois bombeiros e dois militares. No início de agosto, o Presídio Militar de Paratibe, na Região Metropolitana do Recife, abrigava 85 PMs, dos quais 54 estavam presos por homicídio. “Não faço extermínio, só mato bandido, ladrão.”

JC – O senhor é policial militar da ativa?
MATADOR – Sou.

JC – Há quanto tempo?

MATADOR – Vinte anos.

JC – O senhor lembra da Operação Cavalo do Cão? Do SEI? O senhor era do SEI?

MATADOR – Trabalhei nele.

JC – Na época em que o SEI foi desmantelado, o senhor era de lá?

MATADOR – Fazia parte da equipe. De uma das equipes de lá.

JC – Qual a patente do senhor?

MATADOR – Sargento.

JC – Como se deu o envolvimento do senhor com grupo de extermínio?

MATADOR – Não é bem um grupo de extermínio. O pessoal fala de grupo de extermínio, mas a gente só extermina marginal, ladrão.

JC – Quando o senhor diz “a gente”, refere-se a quem?

MATADOR – São policiais. Muitos policiais juntos e uns poucos paisanos. A gente trabalha mais com policial.

JC – São quantos?

MATADOR – Varia muito. Quinze, dez, oito. Depende de quantos estão à disposição. De quem está no setor.

JC – De onde parte a ordem?

MATADOR – De uma reunião completa. Se junta todo mundo...

JC – Junta-se onde? No quartel, na rua?

MATADOR – Na rua, num bar. Em outros lugares. No quartel, nunca. A gente se reúne para poder organizar as coisas.

JC – Quando se escolhe um alvo, qual é o procedimento?

MATADOR – Levantamento do local onde o elemento se encontra. Com quem ele anda... Porque, você sabe, marginal hoje está aqui, amanhã está em outro lugar. E você tem que estar no encalço dele.

JC – Como é a abordagem durante uma ação dessas? O senhor fala alguma coisa?

MATADOR – Não, não, não. Chego detonando logo. Com marginal você não tem o que conversar. Não tem conversa com ele.

JC – Vamos dizer que aquele rapaz passando ali na rua fosse um alvo. Como seria a abordagem? Ele seria baleado onde?

MATADOR – De preferência na cabeça.

JC – Ia mandar deitar?

MATADOR – Não. Ele ia subir ali. Eu ia acompanhá-lo. Chegou ali (aponta para a esquina) eu “toro” ele.

JC – Mas, você chegando assim, ele ia se ligar...

MATADOR – Só que eu ia estar de moto ou de carro. Às vezes você faz até de cara limpa mesmo, para não perder a oportunidade.

JC – O rapaz ali está caminhando ao lado da namorada. Ela seria morta também?

MATADOR – Depende da situação. Depende de quem seja ele. De qual seja a situação dele, do marginal. Se for um cara altamente perigoso, que venha nos prejudicar mais na frente, ela vai junto também. Quem anda com porcos farelo come.

JC – Então, os tiros são só na cabeça?

MATADOR – Quando cair no chão tem que dar mais uns para conferir.

JC – Seriam quantos disparos?

MATADOR – Dois, sete, dez, vinte. O necessário para ter o serviço bem feito. Para não ter retorno, porque, às vezes, o retorno é grande. Isso é que é perigoso.

JC – Quantas pessoas o senhor já matou?

MATADOR – Várias. Malandro, vários. Como especifiquei a você, só marginal. Ladrão não tem vez, não.

JC – Quando foi o último?

MATADOR – O último foi há uns 27 dias, mais ou menos.

JC – Onde?

MATADOR – Não foi no Recife. Foi no interior.

JC – O senhor age também no interior?

MATADOR – O cara estava aqui e fugiu pra lá. Levantamos os passos e fomos atrás dele.

JC – Quantos foram a essa missão?

MATADOR – Seis.

JC – Seis homens chegando a uma cidade do interior chamam a atenção, não?

MATADOR – A gente foi de madrugada. Quatro horas da manhã. Era aqui perto. (Cita uma cidade da Zona da Mata Norte).

JC – Como foi?

MATADOR – Ele estava num barraco. Arrombamos e detonamos.

JC – Quando o senhor diz que matou vários, são mais de dez, 20, 30?

MATADOR – Nessa faixa, mais de 20. Você não entra nesse negócio porque quer. Tem que ter alguma coisa para que você entre nessa situação. Seu círculo de amizade na polícia leva a isso. Um amigo pede. Conta que um ladrão assaltou ele. Que o cara vive em tal setor. O que a gente faz? A gente prende? Não, a gente “tora” ele.

JC – O senhor recebe dinheiro para isso?

MATADOR – Depende de quem seja. Um ladrão que esteja ameaçando algum comerciante, empresário e este venha a gratificar, tudo bem. Mas faço até de graça, se for um amigo meu.

JC – Você já fez muito de graça?

MATADOR – Já. A maioria deles é tudo de graça. Não faço nada por dinheiro, não.

JC – Como é que o senhor se sente depois de um trabalho desses?

MATADOR – Normal. Do jeito que estou conversando com você aqui.

JC – Alguma vez já deu errado?

MATADOR – Já. Já passei um bom tempo sendo perseguido.

JC – Por quem?

MATADOR – Pela própria polícia. Porque a gente não só faz serviço para quem é de fora. Muita gente lá de dentro pede que a gente faça.

JC – Seus superiores?

MATADOR – Com certeza.

JC – Os seus superiores sabem que o senhor faz esse tipo de coisa?

MATADOR – Sabem. Muitos deles sabem. Falam: “Fulano, vá buscar sicrano”. Eles têm contato com a gente.

JC – A sua equipe é uma entre várias?

MATADOR – Com certeza. São várias. Não existe só uma.

JC – Quando o SEI estava ativo era apenas uma?

MATADOR – O SEI era uma cúpula na Polícia Militar da qual nós fazíamos parte e trabalhávamos em prol de resolver situações. Tanto é que deu um bocado de resultado, mas, em compensação, muita gente já morreu. Muita gente foi excluída, muita gente está presa.

JC – Mas só deu bronca para o pessoal de Caruaru, não?

MATADOR – Não, tem muito mais gente complicada.

JC – Esse artigo 14 (legislação estadual que afasta das atividades policiais sob investigação) complicou mais?

MATADOR – É. Você não tem apoio. Principalmente esse artigo 14 e esses... direitos humanos. Aí a gente fica um pouquinho de mãos atadas, mas nada que não se possa resolver.

JC – O senhor está nesse serviço há 20 anos. Sempre com essa postura, e a violência só tem aumentado... Exterminar quem o senhor chama de bandido está funcionando?

MATADOR – Creio que essa forma é melhor do que prender. Prendendo, você paga impostos e o cara está lá dentro do presídio recebendo todo mês R$ 78, comendo, dormindo, assistindo a televisão, com ventilador nos “cunhão”, mulher toda quarta e domingo e você à mercê deles aqui fora. Porque, lá de dentro, eles controlam as coisas aqui fora. Então, não é melhor matar essas “miséra”? Matar, torar tudinho. Por mim tocava fogo em tudinho.

JC – Entre essas várias pessoas que o senhor matou não podia haver uma inocente?

MATADOR – Não. Sou muito ligado nessas situações. Só vou na situação certa. Só vou quando é “Raul” mesmo.

JC – “Raul”?

MATADOR – Ladrão. Marginal. Aí eu vou buscar mesmo.

JC – Se o senhor é da ativa, como o senhor faz para viajar, para passar tempo atrás dos alvos?

MATADOR – Meu trabalho é meu trabalho. Agora, na hora de folga...

JC – O senhor tem escala de 12 por 36?

MATADOR – Não. A minha escala é outra. Diferente.

JC – O senhor tem quantos anos?

MATADOR – Tenho 37. Comecei no Exército com 17 e depois entrei na PM com 21. Por isso, digo que sou militar há 20 anos.

JC – O senhor acha que essa questão da violência vai melhorar aqui em Pernambuco?

MATADOR – Acho que não.

JC – O senhor e sua equipe também sequestram os alvos e depois ocultam os cadáveres?

MATADOR – Às vezes, quando é preciso fazer um arrasto, o local para deixar é ermo. Canavial, esse tipo de lugar de difícil acesso mesmo.

JC – O senhor esteve envolvido em algum caso que chamou a atenção?

MATADOR – A do estuprador de Maranguape, do lixão.

JC – Faz muito tempo?

MATADOR – Faz. Mas você vai lembrar. Um caso que arrancaram a cabeça e colocaram em cima da barriga e o pênis na boca.

JC – Você estava nessa?

MATADOR – Estava.

JC – E quem colocou o pênis na boca do cara?

MATADOR – Um colega.

JC – Fazer isso era um recado?

MATADOR – É, né? Repercutiu em Pernambuco em peso.

JC – Quem deu esse serviço?

MATADOR – Eles estavam roubando e estuprando em outro setor. Fomos atrás, encontramos ele e...

JC – Por que fizeram isso?

MATADOR – Porque um colega pediu.

JC – Vocês já receberam uma ordem como essa de um superior?

MATADOR – Ele reúne o comandante da equipe, informa o que deve ser feito e aquele que está comandando repassa para nós, que fazemos o serviço.

JC – Qual percentagem das mortes no Recife pode ser atribuída a grupos como o seu?

MATADOR – São vários hoje em dia e você está vendo que está “caindo” muita gente. Ninguém quer perder seu trabalho. Perder sua bolacha. Acho que, mesmo assim, os efetivos que ainda restam respondem por uns 40% das mortes.

JC – Esse trabalho que o senhor faz lhe deixa mais tranquilo ou mais indignado?

MATADOR – Veja só. Veja o que o cara fez ontem. Um traficante matou um e depois matou uma menina de 12 anos que era testemunha. Você acha que ele devia ser preso? A cadeia vai educá-lo em alguma coisa? Coisa ruim nasce ruim e vai morrer ruim. Para que não venha a prejudicar outro pai de família, causar uma dor a uma mãe, a um pai. É melhor matar uma “miséra” dessa do que prender.

JC – Vocês também batem nos alvos?

MATADOR – Não gosto de bater em ninguém. Meu negócio é “passar o cerol”.

JC – Alguém já sobreviveu a uma ação como essa?

MATADOR – Já. Mas depois que saiu do hospital “embarcou”. Pegou um Boeing e embarcou.

Publicado no Jornal do Commércio em 13.09.09

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