sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Uma vergonha nacional

Uma vergonha nacional


Em 1996 o governo brasileiro criou o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), com um objetivo ambicioso: alcançar até 2006 todas as crianças e adolescentes utilizados como mão de obra. Em 2005, ao anunciar a mobilização nacional para o 12 de junho, Dia Internacional contra o Trabalho Infantil, o texto promocional do Ministério de Desenvolvimento Social dava o Brasil como referência mundial no combate à exploração de crianças e afirmava que a meta era “erradicar de vez o trabalho infantil até o final de 2006”. Pesquisa nacional por amostra de domicílios realizada pelo IBGE em 2008 e agora divulgada diz que 4,45 milhões crianças de 5 a 17 anos estão no mercado de trabalho.

Nunca foi tão dramática a contradição entre o Brasil emergente e o que permanece como país subdesenvolvido, com uma monumental dívida social e um quinto da nação abaixo do nível de pobreza. Essa contradição é acentuada com o retrato de 2008 divulgado pelo IBGE. Os números são contundentes e previsíveis: a maior parte das crianças em situação de trabalho está na banda mais pobre do Brasil, o Nordeste. Nossa região é detentora do lastimável número de 1 milhão e 700 mil crianças lutando para sobreviver. Significa dizer que o Peti é um programa louvável mas está longe, muito longe, de alcançar sua generosa meta e não pode se perder em retórica, porque o problema da criança pobre brasileira é sério demais.

Por isso o resultado da pesquisa do IBGE deve ter várias e rigorosas leituras. A primeira, mais otimista, diz que o trabalho infantil caiu: no ano passado, deixaram de trabalhar 367 mil crianças. A perspectiva mais realista, no entanto, mostra que não há nenhum motivo de comemoração, que o esforço é residual num quadro bem mais amplo, onde os mais elementares princípios de dignidade dizem que nenhuma sociedade estará comprometida com os valores humanos enquanto uma só criança tiver que trabalhar para sobreviver. Se estamos falando em 4 e meio milhões, não é preciso nenhum esforço para tirarmos a pior das conclusões, de que tudo ainda está por ser feito.

Há outras leituras, institucionais, que precisam ser realçadas sempre que o problema da criança e do adolescente estiver em foco. Uma delas, e a principal, está inscrita na Constituição Federal de 1988, que só admite o trabalho a partir dos 16 anos – se não for noturno, perigoso ou insalubre, e abranda a possibilidade a partir dos 14 anos, mas apenas na condição de aprendiz. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) dá 16 anos como idade mínima recomendada para o trabalho e admite a idade mínima de 14 anos nos países considerados muito pobres. Mas se há risco à saúde, à segurança ou à moralidade do menor, essa idade passa a 18 anos. Para o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) o trabalho infantil é toda forma de trabalho abaixo de 12 anos de idade em qualquer atividade econômica, entre 12 e 14 se o trabalho é pesado, abaixo dos 18 nos casos das piores formas de trabalho infantil enquadradas pela OIT.

Essas piores formas de trabalho infantil são o trabalho escravo ou semiescravo, o que decorre da venda e tráfico de menores, a escravidão por dívida, o uso de crianças ou adolescentes em conflitos armados – como se vê nas favelas sujeitas ao confronto de bandidos com a polícia ou entre eles mesmos –, a prostituição e a pornografia de menores, o uso de menores para atividades ilícitas – como o tráfico de drogas -, e trabalhos que possam prejudicar a saúde, a segurança ou a moralidade do menor. Nós estamos enquadrados em todos esses tipos, o que exige mais rigor crítico na hora de divulgar os dados oficiais, porque não pode haver nenhum tipo de otimismo enquanto esse cenário não for reduzido a lamentável registro de um passado que não queremos de volta.


Publicado no Jornal do Commércio em 01.10.2009

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